Vivemos num tempo em que a palavra “diversidade” está aos poucos assumindo conotações negativas. Parece que o discurso dominante cada vez mais legitima o cancelamento daquilo que é considerado diferente, estrangeiro ao padrão estabelecido pela elite. A nossa bolha gamer não está imune a isso, mas a história dos jogos nem sempre foi assim, avessa ao diferente.
Jesuítas e Nintendistas
Foi no século 16 que o Japão viveu seu primeiro efetivo contado com o ocidente. Época em que o Império Português buscava expansão e novas rotas comerciais. A bordo dos navios da Coroa, a recém fundada Companhia de Jesus ganhava o mundo com seu trabalho de divulgação do Cristianismo. Em uma dessas expedições portuguesas, além dos missionários, as embarcações traziam ao arquipélago japonês diversos produtos ocidentais. Foram importados não só os arcabuzes que dariam um upgrade nas guerras entre os senhores feudais e seus samurais, mas também os jogos de cartas da Terrinha. Essa forma de entretenimento estrangeiro deu tão certo na Terra do Sol Nascente que logo os japoneses produziram versões locais de conjuntos de cartas, com gravuras mais de acordo com sua cultura. A palavra “carta” (em japonês KARUTA – 骨牌, ou 歌留多) foi incorporada ao idioma e até hoje é utilizada normalmente, significando qualquer jogo que faça uso de um baralho.
Muito mais tarde, já em finais do século 19, um jovem japonês visionário e sem medo do diferente enxergou nessa forma de entretenimento estrangeira uma grande oportunidade de negócio, criando na tradicional cidade de Quioto uma pequena fábrica dessas cartas. Esse japonês chamava-se Fusajiro Yamauchi, e sua empresa seria posteriormente batizada de NINTENDO KARUTA, fixando-se como a principal fabricante do jogo que os padres portugueses outrora haviam ajudado a difundir no Japão feudal. A Nintendo fez grande sucesso com uma versão japonesa do carteado, o Hanafuda. No entanto, já no século 20 do pós-guerra, a principal potência mundial não era mais o Reino de Portugal. Assim, o foco da Nintendo no jogo português cederia espaço para uma outra invenção estrangeira: jogos eletrônicos estadunidenses.
O resto da história vocês já conhecem, mas quero utilizar esse pano de fundo histórico para pontuar que a Nintendo obteve sucesso e, de certa forma, salvou toda uma indústria que vivia um gigantesco crash, também devido à sua disposição de abraçar diferenças, conhecer o estrangeiro, absorver novas visões de mundo. Tudo isso com o ideal de produzir uma plataforma de entretenimento possível de ser desfrutada por toda a família. E, mais adiante, não apenas por toda a família, mas por qualquer pessoa a qualquer momento: inclusive dentro do trem, no trajeto de volta do trabalho.
Sede da antiga fábrica de jogos de cartas da Nintendo: foto do ano de 1900
Origens do ódio
No Brasil, somos um país recordista em desigualdade social onde videogame é um bem restrito a uma pequena elite. E como toda elite, nós defendemos uma visão de mundo que ajude a perpetuar nossos privilégios e que impeça que outras classes tenham acesso aos mesmos bens que nós, de modo a não perdermos nosso status.
E de onde vem tanto ódio? O que faz o gamer padrão brasileiro se sentir no direito de infernizar e violentar uma pessoa por acreditar que ela não corresponde ao modelo de gamer profissional?
Certamente é uma pergunta que exigiria uma investigação profunda e teoricamente embasada. Mas gostaria de compartilhar minhas reflexões pessoais.
Permitam-me fazer um rápido comparativo com o país onde moro, o Japão. Aqui, um bico de meio expediente em qualquer loja de conveniência rende cerca de 10 dólares a hora. Ou seja: você precisa de umas 6 ou 7 horas de trabalho para comprar um lançamento do Nintendo Switch. Para adquirir o console na versão padrão, seriam exigidas algo como 30 horas de labuta: 1 semana ralando no balcão da loja, talvez? Ou no máximo 1 semana e meia de trampo? E isso considerando um trabalho desqualificado, de salário-mínimo, sem “carteira assinada.”
Num cenário radicalmente diferente deste, o boom dos games chegou ao Brasil entre finais da década de 80 e início dos anos 90, em meio a uma recessão econômica arregaçante e hiperinflação. Mercadorias tinham seus preços reajustados múltiplas vezes num mesmo dia e compras divididas em parcelas fixas eram um sonho distante. Apesar da pirataria e a viralização dos clones de consoles terem ajudado a democratizar o acesso ao entretenimento eletrônico, o fato é que videogame nunca deixou de ser um passatempo de elite. Sim: o típico gamer hardcore brasileiro é o jovem homem branco, hétero, de classe média, topzeira, que fez cursinho de inglês, geralmente com algum acesso a compras no exterior, seja pessoalmente ou por intermédio de familiar/parente.
Uma bolha toxicamente mimada
Será que o estimado leitor conhece o popular vídeo do garoto dando chilique, cujo Playstation foi parar na churrasqueira? Para o continuarmos nossa reflexão, vamos assumir se tratar de um episódio verídico. Sim: aquele muitas vezes é o nosso gamer raiz. Um almofadinha que trata os parentes com arrogância, coloca seus games como prioridade em detrimento de passar um tempo com a própria família e se acha no direito de agir agressivamente quando o acesso ao seu entretenimento não ocorre na forma como ele gostaria.
E foi justamente o que aconteceu nesses últimos dias: um exército de marmanjos protagonizando ataques histéricos porque um programa sobre seu joguinho preferido não estava sendo apresentado por um dos seus. Com o agravante de que, para o macho gamer versão 2020, não basta mais rasgar as próprias roupas, gritar pela casa e se jogar no chão: ameaças de porrada e de estupro são a bola da vez. E nem é necessário que tenham seus consoles convertidos em churrasquinho. É um perfil de gente com traços de psicopatia, que frequentemente acabar por manifestar o chamado “male entitlement“: a ideia de que o homem seria naturalmente possuidor do direito de se dirigir à mulher como bem entender, e necessariamente receber dela uma resposta positiva às investidas masculinas. Essa noção de que a mulher é por natureza subalterna, e que portanto o homem possui algum tipo de acesso garantido ao seu corpo ou à sua subjetividade, é o que também produz as diversas formas de assédio e misoginia que impregna os games online e os vários fóruns pela internet.
Vivemos numa época especialmente tóxica em que as redes sociais também são utilizadas para dar voz a todo tipo de discurso de ódio. Seria desejável que os games oferecessem um porto seguro, um espaço virtual de entretenimento e interação harmônica entre pessoas diversas, já que, apesar de nossas diferenças, somos todos unidos por uma mesma paixão.
Em uma conversa sobre como esse espaço ideal poderia ser construído, uma grande amiga streamer e produtora de conteúdo gamer me pontuou a importância de as grandes empresas do ramo e formadores de opinião se posicionarem. É necessário deixarmos claro que não há mais no século 21 espaço para atitudes tóxicas, discursos de ódio e ataques gratuitos. Quando ocorre a recusa de se reconhecer e encarar o problema diretamente, perde-se uma grande oportunidade de contribuir para a construção do ambiente saudável. E no caso em questão, além de se ignorar o problema, a empresa simplesmente optou por despedir a vítima.
Infelizmente não conheço uma solução simples para transformar nossa comunidade gamer num espaço mais inclusivo, diverso, onde pessoas não percam trabalho por não se encaixarem em padrões arbitrários. Mas suspeito que a resposta possa estar relacionada a um retorno à proposta inicial por trás da criação do Famicom: uma diversão acessível a todos, e que só foi possível através do conhecimento e incorporação daquilo que é diferente. Tivesse a Nintendo fechado os olhos para as transformações do mundo, talvez estaríamos hoje fazendo reviews, podcasts e gameplays sobre jogos de baralho.
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