O sonho do treinador

O sonho do treinador

Processar lembranças de outrora refletem sentimentos variados, alguns amargos, outros macios e reconfortantes. Como uma maneira de reviver, ou até mesmo de aprender com os fatos ocorridos, lembranças são tudo o que temos afinal; acumular várias delas é nossa sina até que as luzes se apaguem.

O sonho do treinador

Uma vez criança, Satoshi Tajiri explorava a região de Machida, Tóquio. Cidade de atmosfera rural, fator estimulante da sua paixão incomum em coletar e catalogar insetos. Ainda na adolescência criou aptidão por jogos eletrônicos ao conhecer arcades, e se descobriu um futuro criador de jogos ao desmontar seu primeiro Famicon. Mesmo com a vida adulta iniciada, Tajiri se apegava as suas lembranças de colecionador. Com isso em mente, criou não somente um universo que pudesse passar aos outros sua sensação passada — mas sim, o fenômeno mundial dos mais rentáveis da história dos games.

Como mais um na multidão, estava envolvido em tudo isso. Mas o qual seria o impacto que um jogo eletrônico dessa magnitude poderia causar na minha vida? A verdade é que entre alegrias e tristezas Pokémon ainda viria a me incluir em uma roda de amigos, tracejar uma vida paralela e me fazer sonhar.

O sonho do treinador

Em algum ano do ensino fundamental, onde eu ainda tentava lidar com meu lado tímido e pouco social, um coleguinha me mostrou uma revista Nintendo (World?) que destacava Pokémon. Como muitos, minha devida experiência com monstrinhos de bolso se dava a presença de Ash e Pikachu nas telas, que já começavam a esboçar começo de febre aqui no Brasil. A sensação a primeira vista me fazia querer estar naquela imagem de revista que retratava tão bem o 8 bits com poucos efeitos de cores. Foi assim que desejei ter jogo em minhas mãos — RPGs em geral me despertavam o interesse, calejado pelas jogatinas no Super Nintendo. Apesar do ocorrido eu haveria de esquecer Pokémon por algum tempo.

Minhas condições financeiras na época não permitia ter um Game Boy, ainda mais sendo um console tão individual — em casa compartilhava tudo com meu irmão, desde o quarto, a TV e o Super Nintendo; algo normal em muitas famílias. A vida continuou, idas e vindas da escola e aluguéis de cartuchos no final de semana. Dia de sábado, Chrono Trigger ou Killer Instinct ficavam a minha espera como de costume, mas quis um Game Boy atrás do balcão que dessa vez fosse diferente, e seria. A decisão não foi imediata, pois haveria de relevar um aluguel mais caro, talvez o dobro de um cartucho e gastos com pilhas. Apesar disso, recusar a oportunidade não era uma opção no final das contas. A vantagem é que o jogo não precisava ser alugado a parte, então tratei de escolher Pokémon Yellow e tomei meu caminho; portátil debaixo do braço — o deslocamento mais ansioso de toda vida.

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A primeira vez para tudo costuma ser inesquecível, satisfatória ou traumática. Pra mim dessa vez ligar o portátil de poucas cores já era motivo de festa. Convenhamos, Game Boy era um artigo de luxo na época, principalmente para quem tinha acesso apenas a mini-games daqueles 101 jogos que repetia vários Tetris, comprados na feirinha de Aparecida do Norte. Começar Pokémon Yellow é tranquilo quando se tem um Professor Carvalho que te espera de braços abertos, e foi assim esperimentando a atmosfera relaxante de Pallet Town que pude me convencer do efeito mágico programado ali. Nesse ponto, a trilha sonora já tinha me fisgado e bastava apenas descobrir por quanto tempo essa admiração toda ia durar — difícil dizer, pois nem as pilhas que começariam a fraquejar em breve me faria desligar desse mundo.

A semana parecia mais longa, calculando os dias para conectar novamente com meus bichos (na esperança do save ainda estar lá). Jogar Pokémon sozinho pra mim era natural, mas não sabia ainda que não era o ideal. Tive que descobrir um tempo depois, quando tive a oportunidade de assistir de perto dois Game Boys conectados. Meus olhos viam um estádio lotado, e uma batalha memorável o suficiente para recordar. Pokémon era o gatilho que unia, e eu tinha agora, os amigos que eu carrego pra vida.

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Minha querida Shura (Starmie nickname), companheira de muitas batalhas.

Meu novo vício, tinha mais a oferecer. A perspectiva antes de colecionar passou para o esforço de treinar e competir. No começo, eu parecia o primeiro treinador da Rota 1 plantado com seu Caterpie. Me gabava em ter um Alakazam com Dig e Pikachu com Surf (sim, fiz a proeza de colocar os 150 Pokémons no Hall da fama do Stadium), sorte que não existia meme na época. Para passar a ser um Cooltrainer e adquirir respeito, tive que me empenhar o máximo. Percebi que podia competir quando meus mestres que me ensinaram tudo, estavam se tornando rivais.

Apesar da região de Kanto ter sido meu ponto de partida, foi as gerações seguintes que serviram de parâmetros para minha trajetória Pokemâniaca. Johto seguido de Hoenn foram o paraíso das mecânicas voltadas ao competitivo, muitas delas tendo estabelecido padrões para as gerações seguintes.

Das idas e vindas por diversas regiões, até hoje custo a achar um melhor lugar para se estar, entre Johto, sua vizinha Kanto e Hoenn. Conheço cada pedaço, desde a localização de itens e Pokémons escondidos de cada matinho. Transitar por elas é como pisar em solo fértil em uma condição irreal e anestesiante. Na Rota 26, caminho de acesso a liga Johto/Kanto acontecia o que me aquecia o coração. A música ambiente inspirava e apontava o caminho da glória; meu momento decisivo como treinador.

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Rota 26 – Pokémon Heart Gold/Soul Silver

Demorei a ter uma Blue, depois Silver, e meu próprio Game Boy. A Ruby veio de maneira inusitada, na troca por uma coleção de mangás dos Cavaleiros do Zodíaco (Saint Seiya), sendo a única que ainda permanece comigo até hoje; gasta pelas marcas do tempo. Pokémon Stadium por muito tempo resolveu meu problema com a ausência do console portátil, jogava através do Transfer Pak. Foi nessas versões que o sono acumulado das noites mal dormidas deram lugar a jogatinas intensas, táticas em grupo, e treinamentos secretos. Aulas interrompidas para encontrar-se com um Pokémon Shiny e fugas da escola para treinamentos coletivos faziam parte do pacote, e se tornaram recorrentes. Matar aula para jogar Pokémon e comer pão com mortadela era único. Quem mais pensaria nisso?

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A velha de guerra ainda continua por aqui!

Competir nos campeonatos organizados por nós mesmos era o deleite para um treinador incansável, entusiasmado por suas criaturas que eram tratadas como filhos. Mesmo que fossem somente dados virtuais, elas tinham sua própria identidade e acreditávamos nelas como se fossem reais. Costumava ser assim: Coração das cartas, dedo cruzado, e o Critical Hit vinha. Deve ser por isso que ganhei a fama de ser “Hax” — o termo popular do sortudo no mundo Pokémon. Apesar disso, somente Hax não me definia como treinador. Durante minha vida tive uma forte tendência em jogar na defensiva, seja por opção ou coincidência, acabou refletindo também em Pokémon, dando origem a times bem pensados e consistentes que faziam as batalhas durarem até o arroz secar (incomodava os adversários). Stall ou Hax, brincadeiras a parte, foram nas situações hilárias pelos cartuchos piratas de Pokémon que não funcionavam da maneira correta e corrompiam saves, que vimos nossos laços de amizade crescer mais que o universo criado por Tajiri, o suficiente para compartilhar diversos momentos da vida também não relacionados a Pokémon.

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Foram incontáveis situações de euforia vivenciadas em conjunto. Desde o primeiro encontro com o Mew através do “glitch” que ficou famoso em Red/Blue/Yellow, comemorado como um título de copa do mundo, até as brincadeiras com “bugs” do Missigno bizarro como a música de Lavender — tudo para ver até onde levaria a captura de um Snorlax em nível 150 ou o desempenho de um Kangaskhan com Swords Dance e Sky Attack.

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Talvez a última das lembranças mais significativas devem ter ocorrida quando a loucura por Pokémon nos levaram a sair da cidade em busca por oponentes que não fosse nos mesmos. Para ter coragem de sair assim pela primeira vez, foi preciso criar amizade com um pessoal de fora na internet, e estávamos cientes do que podíamos alcançar; tínhamos estratégias planejadas e bagagem, o obstáculo era a incerteza. De qualquer forma nada poderia parar os Poços Caldenses iluminados. Nem o enjoo da viagem, nem um tal de Water Spirit — o “bicho papão” da Liga Joseense que sucumbiu ao StallHax.

Não há como negar. Pokémon era importante demais pra ignorar…

A Missão está cumprida Satoshi Tajiri. Fim da jornada.

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Muito obrigado por chegar até o final. Abraço!


[A coluna acima reflete a opinião do redator e não do portal Project N]

Admirador do gênero RPG e treinador Pokémon da década de 90. Acredita que música e vídeo games são as válvulas de escape da vida.