Pokémon Sword/Shield não apenas é um jogo que eu adorei jogar, mas também representa, a meu ver, um passo na direção correta para a franquia em muitos aspectos. A oitava geração não apenas traz a série, uma das mais populares e lucrativas da história do entretenimento, finalmente aos consoles principais, como também incorpora uma série de elementos e atualizações nos padrões de gameplay que melhoram a qualidade de vida e a experiência do jogador como um todo ao longo de sua jornada.
A partir da sexta geração de Pokémon, a narrativa tomou parte mais central nos jogos da franquia. Há, no entanto, uma espécie de consenso entre os fãs sobre o fato de estes jogos serem menos envolventes, menos memoráveis do que seus antecessores. Mas como poderiam jogos de narrativa mais elaborada serem menos envolventes do que outros que, dentro do mesmo estilo e fórmula, não focavam tanto em desenvolvimento de história? A resposta está na experiência, na jornada em si, e parte crucial disso vem do level design.
Sim, eu sei que, numa franquia como Pokémon, o level design pode não estar tão em evidência quanto em Mario, Donkey Kong ou Zelda – afinal o foco principal aqui é o elemento colecionável e estratégico nas batalhas – mas eu te prometo que o mesmo não é tão descartável assim como pode parecer. Muito das experiências marcantes nos jogos antigos tem a ver com o trajeto e os desafios espaciais enfrentados, que atribuem vida às regiões e tiram delas o caráter de apenas “fases” de videogame.
Histórias e Memórias
O primeiro jogo que ganhei na vida foi Pokémon Gold, no saudoso GameBoy Color amarelo que tenho comigo aqui até hoje. Eu tinha 5 anos e mal sabia falar inglês (ou português, sejamos francos), mas, do meu jeitinho e com a ajuda de alguns amigos que também estavam jogando (apesar de todos terem a versão Silver do jogo… perdedores…) conseguíamos nos aventurar aqui e ali, mesmo às vezes não entendendo nada do texto que líamos no jogo.
Após ganhar meu Nintendo 64 com dois de meus jogos favoritos, Super Mario 64 e Donkey Kong 64, fiquei por muito tempo afastado de Pokémon Gold, e honestamente nunca mais voltei a pegar o jogo do início (já que hoje em dia possuo a versão Heart Gold, que é, a meu ver, não apenas o melhor jogo da série mas também um dos melhores remakes que existem).
No entanto, apesar de literalmente não jogar o jogo há mais ou menos vinte anos, ainda tenho em memória, quase como tatuagem, momentos marcantes do game, que inevitavelmente tinham como palco algumas das áreas mais memoráveis de Johto, que citarei a seguir (e, alerta de spoilers, nenhuma delas é um mero corredor).
Em termos de progressão, havia diversos momentos do game em que ele se comportava como um verdadeiro Metroidvania, em que trechos anteriormente inacessíveis se abriam com a conquista de algum novo item ou habilidade. Foi assim no caminho bloqueado pelo infame Sudowoodo, em que devíamos usar a Squirtbottle para espantar o desagradável bichinho, nas diversas cachoeiras que observamos ao longo do trajeto e que subitamente se tornavam caminho percorrível ao obtermos o HM Waterfall, nas várias instâncias em que Strength ou Rock Smash nos abriam novos caminhos em cavernas e, entre outros, na própria lagoa que nos levava de Johto para Kanto, no que é possivelmente um dos momentos mais chocantes e marcantes de toda a franquia.
Em termos de desafios de percurso, havia o clássico puzzle do chão deslizante no gelo, o caráter labiríntico da torre queimada e das cavernas do jogo, e as próprias Routes, com frequentes trechos bloqueados e caminhos curvilíneos, e é nesse momento que aquele fã que terminou o jogo ontem pela vigésima quinta vez vai me odiar por ter esquecido de mencionar alguma área específica do jogo, mas enfim, o que quero dizer aqui é que a experiência como um todo é uma costura de áreas muito bem desenhadas.
Hoenn faz isso muito bem também, com áreas variadas e um design que faz com que o jogador pense e analise o layout dos elementos de cada lugar, mas com um destaque em particular: o Surf. Quando se obtém a habilidade de percurso sobre água, a região inteira absolutamente explode em potencial de percurso e em imersão. Hoenn é recheada de áreas aquáticas expansivas em todas as direções, com segredos interessantes e áreas completamente opcionais.
A partir daquele momento, a experiência do jogo alcança um novo patamar: uma jornada completamente sua, a ser explorada como você, jogador, bem entender. A chave para o sucesso do Surf em Hoenn é o design amplo e expansivo, que na maioria das vezes não prende o jogador em estruturas de corredor… mas falaremos sobre corredores daqui a pouco.
Percurso e Mapas
Hoje em dia, já não é necessário um texto do Project N para te dizer que os mapas recentes de Pokémon são bem mais lineares do que antigamente, certo? Porém, já que estamos falando de level design na franquia, é importante tratar disso, até para evitar de comentários do tipo “você nem sequer mencionou…”.
Enfim, como estavamos dizendo, os mapas das regiões adquiriram um caráter mais linear ao longo da franquia. Ao compararmos o layout das regiões mais recentes em comparação com as das quatro primeiras gerações, vemos que nas últimas gerações o mapa parece quase que um roteiro turístico, com um ponto claro de início e poucos trajetos possíveis… algo como uma experiência guiada. Enquanto isso, nas primeiras regiões a distribuição das cidades no mapa passa uma sensação mais orgânica, menos planejada.
Mas por que eu hesitei em trazer este tópico dos mapas à tona? Pois, a meu ver, ele não importa tanto assim para a discussão. Mapas possuem um escopo amplo demais para serem a causa desta sensação de linearidade, e além disso, o jogo pode contornar tranquilamente um mapa “linear” distribuindo a história em cidades não imediatamente subsequentes ou fazendo o jogador retornar para locais já visitados em pontos-chave da trama.
Não estou dizendo que uma bifurcação de caminho aqui ou ali não ajude a quebrar a sensação roteirizada e engessada destes mapas recentes, porém em grande maioria do tempo a atenção dos jogadores não está voltada aos mapas como um todo, mas sim no design dos caminhos que o personagem percorre. Isto, em Pokémon, se traduz nas Routes, nas cavernas, florestas e bosques, áreas aquáticas… enfim, conexões entre cidades. Apesar de grande parte dos momentos substanciais de narrativa ocorrerem nessas grandes cidades das regiões, a maior parte do tempo é passada nestes caminhos e conexões, onde a exploração toma conta da aventura.
O melhor exemplo disso é a peculiar região de Unova, palco de alguns dos jogos mais controversos da franquia. Ao analisarmos o mapa do local como um todo, veremos que grande parte das cidades da região são dispostas em um grande anel. Mais linear que isto, é quase impossível. É um circuito pleno e roteirizado. Porém, ao aprofundarmos um pouco mais nosso olhar, é possível ver que os caminhos em si, em sua maioria, possuem grandes desvios, mudanças de direção e sub-áreas.
Uma área que ilustra bem a filosofia de design da região de Unova é a Pinwheel Forest. Nela, o caminho para a próxima cidade não poderia ser mais direto e óbvio, quase que uma linha reta vertical. No entanto, além dele, existem no local áreas laterais muito expansivas que permitem que o jogador explore e se perca em meio à floresta. Aliás, retomando o argumento de uns parágrafos atrás, esta é uma área à qual o jogador retorna posteriormente na história, obtendo então acesso a novos trechos dentro dela.
E, claro, Unova também tem seus trechos mais enfaticamente lineares, como a Route 5, por exemplo. Porém, estes trechos são bem menores, e designados apenas como transições, e não como zonas de exploração, e o resultado disso é que o jogador passa bem menos tempo nessas meras conexões do que nas áreas mais exploráveis.
O Layout e Suas Consequências
O problema das rotas, principalmente de Alola e Galar, é a quase total ausência desses trechos derivativos de exploração desviando do caminho principal. Isso sim é o que traz a real sensação de linearidade nos trajetos desses dois games. Nunca há a liberdade para se fazer aquele desvio por conta própria, e não existem trechos que instigam a sua curiosidade.
Quando estes trechos pura e simplesmente lineares predominam, o caminho tem cara de caminho em absolutamente 100% do tempo, o que traz ao jogador aquele senso de roteiro turístico durante toda a aventura… e digo aventura de maneira muito generosa, pois, a meu ver, a sensação de se aventurar é justamente o que é subtraída do jogo quando se adota este design excessivamente linear para as Routes. Não há segredos nem descobertas. Não existe aquela surpresa agradável que, dentre seus amigos, só você encontrou. Há apenas o próximo objetivo, o próximo destino. O trajeto é formulaico, e será exatamente o mesmo para todos os jogadores. Sendo assim, não existirão histórias para contar, não existirão memórias marcantes. A experiência nunca será única, personalizada.
Uma rara exceção é a Route 4 de Galar, de todas elas, a mais expansiva no sentido de que há múltiplas direções para se percorrer. Mas ainda que esta rota apresente uma liberdade direcional maior para o jogador, não existe nada de peculiar ou característico em quaisquer das direções que se vá, e a região, apesar de muito bonita, oferece pouco em termos de conteúdo próprio e/ou desafios de percurso. Portanto, a impressão causada pela mesma não difere muito daquela que os trechos lineares deixam na cabeça de quem joga.
Por tal motivo, creio que o level design das mais recentes interações de Pokémon é o real motivo que leva muitos a terem opiniões mornas a respeito destes jogos. Normalizando os percursos e automatizando os deslocamentos, estes trechos excessivamente lineares e sem desafios sabotam a criação de memórias individuais de cada um que os percorre, e homogenizam a experiência dos games em questão, criando experiências quase industrialmente semelhantes para todos os jogadores.
“Pós-conclusão”: a Wild Area (e seu futuro)
O ponto que queria debater a respeito do impacto do level design das rotas nos jogos de Pokémon já está concluído. Gostaria, no entanto, de dar particular atenção à area que deu o que falar em Pokémon Sword/Shield antes de finalizar o texto, para discorrer sobre o que ela faz de melhor em relação aos outros trechos do game, e também opinar sobre onde acho que a mesma deveria (e muito) melhorar.
Antes de partir aos meus questionamentos, gostaria de sedimentar aqui: esta é a melhor parte do jogo. A Wild Area representa o que há de melhor em Galar, e na franquia como um todo. Em contraponto às rotas lineares em que o jogador mal muda a direção no joystick, temos aqui uma área expansiva que fundamentalmente nos coloca em posição de liberdade, para progredirmos como bem entendermos. Aqui, sim, as experiências de cada jogador são únicas, e, portanto, grande parte dos momentos memoráveis são criados.
Há, no entanto, muito espaço (literalmente) para melhora na Wild Area. Em primeiro lugar, apesar de a mesma ser muito mais expansiva que os outros recintos do jogo, ela o é somente na horizontal. A ausência de elementos de progressão vertical neste game como um todo me faz pensar se ele é mesmo digno da descrição “jogo em 3D” ou se a terceira dimensão funciona apenas no que diz respeito à visualização do mundo em que ele se localiza. Todo o progresso do jogo é feito na horizontal (o que, no meu ponto de vista de arquiteto, é um verdadeiro desperdício), e a Wild Area não é diferente.
Uma zona tão vasta se beneficiaria, e muito, de elementos verticalizados, como grandes árvores percorríveis ou até mesmo montanhas ou torres percorríveis. Claro que há trechos mais altos e baixos em sua configuração, mas isso não impacta de maneira alguma sua acessibilidade ou caráter de exploração. Honestamente, se a área atual fosse inteira chapada no mesmo nível, o trajeto dos percursos continuaria exatamente o mesmo. Uma zona mais diversificada tridimensionalmente tornaria a exploração da mesma muito mais desafiadora e, portanto, interessante, pois na Wild Area atual o único desafio de percurso que se tem é a exploração dos lagos, que se torna possível com o upgrade da Rotom Bike.
E falando em complexidade do espaço, gostaria que a Wild Area fosse um pouco mais heterogênea em sua composição. Nesta que temos (excluindo-se as regiões dos DLCs) só existem 3 ambientes predominantes: o gramado, os lagos, e a região desértica. Creio que uma geografia mais variada beneficiaria não apenas o ritmo do jogo mas também a imersão, podendo-se então distribuir Pokémon mais “precisamente” com suas tipagens conforme as regiões, bem à maneira como as Routes já fazem mesmo.
Além disso, esta zona de exploração se beneficiaria muito com a inclusão de mais monumentos e pontos focais. Na Wild Area de Galar, os únicos grandes pontos de destaque em meio à vastidão são a formação rochosa ao centro do deserto e a Watchtower Ruins, uma torre abandonada. O resto é literalmente terra, grama e água. A torre em questão é rodeada por Pokémon do tipo Ghost. Seria muito interessante ver algo parecido para outros tipos, como uma grande (e eu digo BEM GRANDE mesmo, possivelmente escalável ou percorrível de alguma forma) árvore, rodeada por Pokémon do tipo Grass ou Bug, ou uma caverna com ambientação similar aos bosques densos de Ballonlea e cheia de Pokémon do tipo Fairy. Uma boa zona selvagem seria um ambiente massivo que funcionasse como uma costura entre esses pontos focais, estes pequenos ecossistemas.
Vale lembrar que as alterações climáticas já estão presentes, e trazem consigo também variedade nas espécies de Pokémon encontradas, o que é de fato interessante, porém uma hipotética área com neve, deserto, montanhas rochosas e outras configurações geográficas certamente é muito mais interessante e instigante do que uma que oscila apenas entre “gramado com chuva”, “gramado com neve” e “gramado com sol”.
Neste tópico, gostaria de ver também algum tipo de desafio de percurso, como puzzles espaciais, cavernas difíceis de explorar ou algo assim. Atualmente, a única coisa que te impede de cruzar a Wild Area inteira logo no início do jogo são os Pokémon de nível elevado que se concentram nas regiões mais próximas a Hammerlocke. E num jogo onde podemos ver os Pokémon vindo ao ataque e correr deles, tal estratégia não funciona muito bem como “impedimento”. Seria muito legal ver esta vasta área se expandindo cada vez mais conforme o personagem adquirisse novas habilidades de percurso.
Caso bloquear sessões da Wild Area seja muito extremo, que pelo menos a próxima instância dela esconda puzzles ou zonas secundárias atrás de algum tipo de desafio de percurso. Literalmente qualquer coisa. Caminhar não é gameplay interessante. A franquia Pokémon dilui muito bem a frustração de apenas caminhar daqui para lá com encontros com Pokémon selvagens, mas mesmo assim, algum tipo de variação ou tarefa envolvendo um percurso mais desafiador seria um bom respiro para manter a exploração da área num ritmo sempre instigante.
Os parques da Disney – por favor, não desista do texto agora… estou longe de pensar que a Disney deve ser tomada como referência para projetos no mundo real – possuem uma proposta espacial que, a meu ver, funcionaria muito bem para a região aberta dos jogos de Pokémon. Neles, alguns grandes pontos focais são distribuidos (como o Castelo, a Space Mountain e as outras grandes atrações de destaque, que podem ser vistas de qualquer ponto dentro do território do parque), e então traçam-se caminhos entre eles. Nestes caminhos, são colocados pontos focais de menor escala, como outras atrações menores e mais variadas. Finalmente, entre estes pontos focais de menor ênfase, são instalados espaços para preenchimento do percurso em si, como lojas, lanchonetes, jardins e pequenas áreas expositivas.
Esta distribuição hierárquica das edificações permite que o percurso sempre tenha um foco, um objetivo, mas também recheia o caminho até tal objetivo de coisas para fazer e torna o trajeto muito mais proveitoso. Esta estratégia é muito adotada em Breath of the Wild e nos melhores mundos abertos entre jogos por aí, como a ilha de Tsushima em Ghost of Tsushima ou o continente de Teyvat, de Genshin Impact, e funcionaria muito bem em Pokémon, tornando o simples caminhar na Wild Area uma atividade mais surpreendente e engajante.
Depois de tanto falar, numa sessão pós-conclusão que ficou mais longa que o resto do texto, só quero afirmar uma coisa: a Wild Area me empolga para o que está por vir. O primeiro passo foi dado, porém ainda há muito o que melhorar no formato, e as vias para fazê-lo são, a meu ver, extremamente claras. Com mais variedade e maiores desafios, creio que a próxima interação desta área tem tudo para ser o ponto-chave para a próxima fórmula de sucesso da franquia Pokémon (para que, então, seja utilizada à exaustão nos próximos vinte anos da série, como provavelmente acontecerá).
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