Ontem, dia 23 de Julho, assisti a uma livestream de gameplay do veículo The Enemy, em que Bruno Silva, um dos integrantes da equipe, enfrentou pela primeira vez em sua vida o infame Water Temple, de The Legend of Zelda: Ocarina of Time. Enquanto o jogador comentava que sabia da reputação negativa da fase, o chat fervia, com acusações de “pior dungeon da franquia” e até “trecho mais irritante da história dos games”, o que me motivou a dar a cara a tapa aqui mais uma vez, a fim de oferecer meus pitacos sobre este calabouço que marcou, para o bem ou para o mal, a vida de muitos gamers ao redor do globo.
A Bota você Calça
Em primeiro lugar, para evitar qualquer dúvida a respeito da crítica mais óbvia (e, de fato, embasada) à dungeon, este texto não tratará a fundo da questão da troca das botas no templo. Acessar o menu, na versão de Nintendo 64 do jogo, a cada vez que se necessitava flutuar ou afundar era de fato uma grandicíssima chateação, porém uma que, ao meu ver, mais impedia as pessoas de analisar a fase segundo suas próprias características do que evidenciava problemas de level design.
Este é, de fato, um ponto notório da versão original do game, porém creio que a versão de 3DS o soluciona de maneira tão adequada que permitiu ao público enxergar de fato o templo como um quebra cabeça, em vez de um simples palco para a maior frustração mecânica da história da franquia.
Zelda e seus Calabouços
Anteriormente ao lendário Ocarina of Time, as dungeons de Zelda eram notórias por sua característica labiríntica, em que caminhos eram abertos em múltiplas direções, desafiando o senso de localidade do jogador e o obrigando a manter o layout do calabouço como um todo sempre em mente, a fim de evitar perder-se num mar de salas e obstáculos.
Portas eram abertas utilizando-se chaves que estavam em diferentes localidades do ambiente, instigando então uma exploração completa do local, a fim de melhor compreender sua lógica e disposição.
Nesta filosofia de design, é comum um puzzle de uma sala exercer influência sobre algo que ocorre em outra, de alguma forma então alterando a progressão ou abrindo caminhos. Temos, aqui, então, dois tipos de desafios: os locais, específicos a certos recintos, e os globais, que impactam a dungeon como um todo.
Em Ocarina of Time, no entanto, o design das dungeons parece seguir outro padrão. No jogo, a maioria delas possui uma grande sala central, que funciona como uma espécie de hub, conectando os diversos corredores e outras passagens que compunham o ambiente.
Apesar deste layout enfáticamente tridimensional, a progressão pela maioria destas dungeons é, em sua essência, linear. Uma vez que resolvidos os puzzles em determinada sala, aquele desafio local estava agora completo e nada mais havia para se fazer ali. Como o jogo era a primeira aventura da franquia em 3D, é bem possível que este approach mais linear e direto tenha sido aplicado de maneira proposital, para evitar eventuais exageros por parte do time de desenvolvimento que pudessem deixar os jogadores muito desorientados.
Neste modelo, então, o hub é essencialmente a única sala da dungeon pela qual o jogador deve passar múltiplas vezes, e há muito mais ênfase em desafios locais do que globais, o que pode tornar os calabouços mais parecidos com uma sucessão de obstáculos do que com um puzzle interconectado que deve ser compreendido por completo.
A Forma da Água
O Water Temple é a única dungeon de Ocarina of Time que representa em 3D o modelo implantado majoritariamente nos jogos em 2D. Aqui, o desafio global é representado pela mecânica central do calabouço: a alteração do nível da água.
E não é porque existe uma mecânica que implica num desafio global, que a mesma é necessariamente bem executada. Sempre há casos em que se interfere no ambiente por puro acaso, o que pode tirar um pouco da sensação de satisfação e roubar-nos aquele momento “eureka” de realizar algo com intenção e propósito.
Por sorte, aqui, a mecânica é implementada de maneira sólida e enfática, sendo que a fase intencionalmente se inicia um tanto restrita em seu percurso, forçando o jogador a, mais cedo ou mais tarde, testar por si próprio a ferramenta de alteração de nível aquático e perceber os efeitos da mesma no espaço, liberando alguns caminhos e, muito importantemente, bloqueando outros. Isto não só força o jogador a compreender melhor as nuances da mecânica como cria o tal do desafio global na dungeon, em que o layout como um todo deve ser sempre mantido em mente pelo jogador.
O Bait do Bait
Além de um percurso segmentado, outra característica marcante e muitíssimo importante do Water Temple é o fato de que ele mostra ao jogador trechos que, em primeira instância, são inacessíveis. A maioria deles diz respeito à relação entre o Hookshot, um item que o jogador já tem quando chega ao templo, e o Longshot, uma espécie de “upgrade” de maior alcance, que é o item que conseguimos dentro desta dungeon.
Em muitos pontos da dungeon, vemos ganchos aos quais podemos lançar o Hookshot, porém nunca em pontos onde o mesmo tem alcance suficiente. O que é criada aqui é uma estrutura de pensamento, onde cremos já ter o item necessário, porém não uma plataforma próxima o suficiente para usá-lo nestes pontos, e o que ocorre de fato é justamente o contrário: já podemos alcançar todos estes ganchos de onde estamos, porém não temos o item necessário, que é o Longshot.
Ao brincar com nossas espectativas, o templo nos encoraja a explorar cada canto de seu trajeto com múltiplos pontos focais em mente, e constantemente incentiva a tentativa e erro, contribuindo ainda mais para o elemento de puzzle, e somente depois disso nos oferece o Longshot, que é a solução para estes múltiplos problemas encontrados, nos proporcionando então aquele momento de “A-ha! Agora eu entendi tudo!” que é tão satisfatório nos quebra-cabeças.
O Espaço Mutável
Alterações no espaço são algo de certa tradição na franquia, com múltiplas dungeons abordando seu trajeto desta maneira. À época de Ocarina of Time, já existia o que é inclusive uma das intervenções espaciais mais icônicas e marcantes da série, na dungeon Eagle’s Tower de Link’s Awakening (sobre a qual não falarei mais nada para evitar estragar a surpresa para quem ainda for jogar este jogão).
Em Ocarina of Time, há vários momentos em que tais alterações ocorrem, tanto dentro quanto fora das dungeons, porém, em sua maioria, as mesmas funcionam no intuito de “abrir um caminho” permanentemente. Onde Link não consegue mais progredir, é criado um novo trajeto, que altera permanentemente o estado das coisas.
No Water Temple, no entanto, as mudanças espaciais são constantes, e para progredir, deve-se executar múltiplas alterações no nível d’água. Aqui, o percurso não é apenas uma questão de elevar, elevar novamente, e subsequentemente elevar mais um pouco o nível aquático até chegarmos ao ponto mais alto. O que ocorre no calabouço é um revezamento no trajeto, entre pontos elevados e profundos e, também, entre pontos secos e submersos.
O nível da água não apenas muda os andares aos quais Link tem acesso, como altera também a progressão até dentro dos mesmos recintos, que se comportam de maneira completamente diferente quando secos do que quando inundados. Pelo fato de o nível da água só poder ser alterado em localidades específicas dentro do calabouço, este é mais um ponto que contribui para o mapeamento mental da dungeon como um grande desafio global.
Considerações Finais
Talvez seja tarde demais para tentar redimir o Water Temple, nem que, a meu ver, o mesmo tenha sido julgado culpado por um crime que não cometeu. A questão das botas de fato prejudicou, e muito, a experiência de percorrer este labirinto aquático, e quanto a isso, não tenho muito como contra-argumentar.
Ainda que, ao pararmos para analisar cada sala do templo, possa surgir algo que não nos agrade tanto assim (como, na minha opinião, algumas lutas contra inimigos em corredores estreitos que dificultam a visualização), tais problemas, em sua vasta maioria, dizem respeito aos desafios locais, e não ao global, e influenciam muito pouco na experiência do conjunto da obra da fase toda.
Já passaram-se anos desde que o 3DS nos agraciou com uma versão “otimizada” da fase, e muitos fãs já puderam experienciá-la desta nova maneira, e por isso creio que é hora de repensarmos nossas frustrações a respeito do Water Temple. É uma fase complicada e difícil? Certamente. Requer muita atenção? Sim, e muito mais atenção, inclusive, do que as outras dungeons do jogo, o que pode de fato pegar alguns de surpresa.
Apesar, no entanto, de ser um desafio maior, a fase não é em nenhum momento injusta. Boas técnicas de level design garantem que o jogador perca-se no labirinto, porém sem nunca ficar sem saber o que fazer, mas sim apenas tentando descobrir como fazê-lo, o que é, em sua essência, a característica fundamental de um bom puzzle.
O templo meticulosamente nos faz compreender pouco a pouco o que pode ou não pode ser realizado, elevando imensamente a recompensa daquele momento “eureka” de quando encontramos o Longshot, em que finalmente compreendemos o espaço por completo, naquilo que é um dos trechos mais satisfatórios de todo o jogo. A frustração de estar perdido é cautelosamente construída para nos apresentar a solução da maneira mais efetiva.
Voltando à livestream do The Enemy, não à toa, o jogador Bruno Silva, que, ao longo do percurso da dungeon havia admitido algumas vezes estar um pouco desorientado, ao fim do calabouço, ao ser questionado sobre a sua opinião a respeito dele, declarou “eu achei muito legal, cara… achei engenhoso!”. É exatamente isso.
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