Dor, ação e doação

Dor, ação e doação

Renato sabia que as coisas nunca seriam fáceis pra ele. Não vinha de berço dourado ou tinha padrinho abastado. Sofria do mesmo mal que milhões de pessoas sofrem nessa Terra: era pobre demais pra ter o que sonhava...

Renato sabia que as coisas nunca seriam fáceis pra ele. Não vinha de berço dourado ou tinha padrinho abastado. Sofria do mesmo mal que milhões de pessoas sofrem nessa Terra: era pobre demais pra ter o que sonhava...

Renato sabia que as coisas nunca seriam fáceis pra ele. Não vinha de berço dourado ou tinha padrinho abastado. Sofria do mesmo mal que milhões de pessoas sofrem nessa Terra: era pobre demais pra ter o que sonhava, honesto demais para tomar o que queria e bom demais pra existir num mundo tão cruel e que nem sabia da sua existência. Perdeu os pais cedo e viu os irmãos se perderem no mundo. Aprendeu a pedir pouco e aceitar o nada que lhe era oferecido. Comia quando dava, tomava água quando e onde podia e dormia onde lhe era permitido.

Não sabia quantos anos tinha, não lembrava seu sobrenome. Documentos? RG? CPF? Apenas letras e palavras sem conexão com a sua luta diária por sobrevivência. Tinha vergonha de olhar as pessoas nos olhos, deixar que vissem seu rosto. Falava o básico e quando falavam com ele. Agradecia, comia e ia embora. Sabia que as pessoas até gostavam de ajudar, mas ninguém o queria por perto tempo demais. Tinham medo. Nojo. Pena. As duas primeiras ele aceitava, a última não. Pedia para limpar as calçadas, varrer ou qualquer coisa que pagasse sua comida. Tinha vergonha e medo.

Aquelas pessoas não pareciam bem, ele pensava. Olhos assustados, mãos encolhidas escondendo as bolsas, carteiras, celulares, joguinhos eletrônicos. Viviam se protegendo e desviando dele e de seus amigos de rua. Olhavam torto, viravam o nariz. Alguns vinham ler a Bíblia. Ele fingia ouvir para receber a marmita que ofertavam depois. Aquelas pessoas ávidas a ajudar não olham nos olhos, não falam direito ou sequer pegam nas suas mãos. Não sentam pra ouvir seus causos. Não bebem da sua pinga em camaradagem. Não passam a noite com ele ofertando não só comida.

Ele gostava do Bigode. Quando Nato, seu apelido, via o Bigode trabalhando seus olhos enchiam de lágrimas. Ver o esforço, a correria, a persistência e bondade. Bigode ajudavam quem podia, trazia alegria a todos a sua volta. Dividia o pouco que tinha e não excluía ninguém. Nato perdeu as contas de quantos dias ficou sentado na calçada olhando pra dentro da loja apenas sonhando em ajudar aquele camarada nas suas tarefas. Não sentia fome, nem sede ou frio. Seu sorriso era notado por todos, que também sorriam ao presenciar tamanha alegria afastando as trevas de uma vida sofrida.

Dia desses voltando da calçada do Bigode avistou uma moça bonita andando feliz pela rua, com a mochila nas costas indo pra algum lugar sem pressa. Ele sentou na fonte como sempre fazia aquela hora do dia, continuou olhando. O quê o Bigode faria? A moça se aproximou de um casal que estava discutindo. Ela tentou salvar a menina, porém o cara era estúpido, gritava e tentava agredir as duas. Bigode. Ele correu quando viu a mão do moço alcançar na cintura um objeto que Renato conhecia de perto, já tinha visto aquele cano apontado pra própria face quando “pediam” que se retirasse. Correu pra avisar a menina. Não deu. Susto. Ela caiu. Ele segurou a sua mão. Na pulseira um nome. Gaby. Devia ter seus 15 anos. O moço estúpido gritava: Marina. Nato não sabia o que fazer. Tentou. Susto. Não fez.

Quando acordou estava no hospital. Numa cama com dores no corpo e com a garganta seca. Olhou em volta. Não conseguiu levantar e fugir. Não tinha forças. Desmaiou.

Acordou com as enfermeiras lhe chamando de herói. Salvou uma das moças. Pena que a outra morreu. Levou dois tiros. Perdeu um rim. Ganhou um novo de Gaby. Não respondeu. A menina morreu.

Dois dias depois acordou com um senhor de óculos e cabelos cinza sentado ao seu lado. Chorava. Pediu perdão por estar ali. Contou sobre Gaby e como ela amava a vida e os jogos. Disse que pagaria as contas do hospital. Ela iria gostar. Tinha um estojo nas mãos. Levantou soluçando de chorar pedindo perdão e agradecendo. Deu o estojo a Nato. Ela iria querer assim. Espero que você goste tanto quanto ela.

Ele saiu. Renato abriu o estojo. Tinha um “celular” com as letras 3DS. Nunca tinha visto. Ligou e tomou um susto. Chorou feito criança e agradeceu. Apertou Start e disse soluçando:

Oi, Bigode!

Bom fim de semana, fiquem bem.

Quer saber mais sobre a Gaby? Leia aqui


[A coluna acima reflete a opinião do redator e não do portal Project N]

Nerd, nostálgico, pai e professor. Reclamador profissional com PHD em Harvard. Conheço o Mario, e daí? Assopra a fita e bora jogar! Canal Juninhos Fun Club no Youtube!!!