Hanabi

Animal Crossing: o melhor game que nunca joguei

No Japão não chegamos a passar por um lockdown. O discurso oficial afirma que há neste país um impedimento legal para isso. A legislação japonesa não prevê esse tipo de cerceamento de liberdades individuais, mesmo nessas condições, portanto exigir que a população local fique em casa seria inconstitucional.

No entanto, lembremos que os japas praticam distanciamento social before it was cool. Aliás, muitíssimo antes. Máscaras e álcool gel fazem parte do cotidiano local desde sempre, e frequentemente a gripe comum (influenza) é motivo suficiente para se faltar ao trabalho/escola, bem como isolar o doente no quarto.

Como em toda parte do mundo, a pandemia impactou o modo de vida japonês, afetando inclusive algumas de suas principais manifestações culturais. Possivelmente, a mais abalada delas foram os chamados matsuris: espécies de festivais locais, tradicionalmente em celebração a divindades ligadas à agricultura ou de proteção da região. Nesses eventos, é comum haver queima de fogos, diversas barracas de comidas típicas, brincadeiras, danças, apresentações no palco e, como atração principal, o desfile dos dashi, espécie de carros alegóricos cheios de gente envolta carregando imagens sagradas. Toda a festa é também regada a muito álcool e gritaria, uma espécie de carnaval japonês.

A história tende a ser contada a partir do ponto de vista dos vencedores, da classe dominante em seus palácios e disputas políticas. No caso japonês, mais do que fábulas sobre a honra dos samurais e beleza das gueixas de Quioto, a história do Japão é também a narrativa de um povo que incessantemente lutou pela sobrevivência contra fome num território de recursos limitados, guerras civis, pandemias, e toda a sorte de desastres naturais: terremotos, tufões, grandes nevascas, enchentes, erupções vulcânicas e tsunamis.

Em meio a esse contexto de tantas calamidades, os matsuris são tradicionalmente um momento de libertação. Etimologicamente, a palavra vem do verbo matsuru: venerar, endeusar, reverenciar. É nesses festivais que um povo sofrido, vítima de tantas catástrofes, naturais e humanas, tem a oportunidade vivenciar momentos de intensa alegria em comunidade, ao mesmo tempo que suplica às divindades para que a natureza e os homens sejam mais piedosos, possibilitando melhores colheitas, menos doenças, menos guerras. Mas todo o carnaval tem seu fim. Os matsuris são eventos de no máximo 2 ou 3 dias e, a cada ano, os japoneses precisam renovar esse ciclo de veneração e libertação, mantendo aceso o desejo por uma vida melhor. Em 2020 esse ciclo de celebrações foi interrompido pela pandemia, e o povo no Japão, como em todo mundo, foi obrigado a usar a criatividade para reinventar os rituais que mantêm seu espírito conectado à sua comunidade e à esperança em dias mais tranquilos. Nesse contexto de necessidade de reinvenção, surgiu um novo vocábulo no cotidiano japonês: Atsumori – a abreviação de Atsumre! Dobutsu no Mori (algo traduzível como Reúnam-se! Floresta dos Animais), o título original de Animal Crossing: New Horizons.

Todos sabemos que jogos simuladores de vida não são novidade. Mas a maneira como Atsumori reuniu a simulação e o co-op online proporcionou justamente dois dos elementos que os japoneses mais sentiam falta em tempos de pandemia: o momento de libertação da realidade difícil, e o desejo em comunidade por dias melhores – ambos elementos que compõem a base do matsuris cancelados pelo vírus.

Não joguei uma hora sequer desse game, mas convivo com ele desde o lançamento graças a minha filha de 8 anos. Simplesmente não é meu estilo. Sou um eterno moloque dos anos 80 amante de um bom scrolling platformer e RPGs com uma boa história. No entanto, acho que percebemos que estamos diante de um grande jogo, entre outras coisas, quando ele se torna um fenômeno ao ponto de participar da vida até dos não jogadores. Atsumori além de ter passado a fazer parte do imaginário do japonês comum, ajudou a preencher algumas lacunas deixadas pela pandemia. Lacunas essas universais: somos todos bichos sociais, e não só os japoneses têm a necessidade de se sentir pertencente a uma comunidade e ter momentos de libertação.

Especificamente no meu caso, acho que nunca vou me esquecer do verão de 2020, quando não pude levar minha filha para nenhum matsuri devido ao distanciamento social. Mas ela prontamente recebeu suas duas melhores amigas na sua ilha para assistirem juntas à queima de fogos no festival do game. Atsumori talvez não ganhe o título de Game of the Year. Mas seu legado é inegável.


[A coluna acima reflete a opinião do redator e não do portal Project N]