Escrito e editado pela Equipe Coelho no Japão
Artigo escrito por Frederico Tales.
Os filmes nos oferecem representações vívidas de mundos pós-apocalípticos. Se você já assistiu Akira, sobre os efeitos diretos de uma guerra nuclear-biológica, provavelmente associa o fim da civilização a ruínas da cidade repletas de radiação, dominadas por ratos, baratas e poderes psíquicos. O fim absoluto é ainda mais esquisito em outros filmes que tratam também de um cenário pós-apocalíptico: Mad Max, Guerra dos Mundos e até mesmo Matrix.
No que diz respeito aos apocalipses dos filmes, essa é apenas a ponta do iceberg coberto de poeira. Há mais, muitos mais, e a maioria é sombria e sem esperança. A mídia que inspira os mundos pós-apocalípticos pelos quais passamos nos videogames é tipicamente de ruínas enferrujadas, onde a água limpa é escassa, a comida é envenenada, os animais são maus e as pessoas são ainda piores.
A série Fallout, sem dúvida a franquia de videogame mais conhecida sobre sobreviver ao apocalipse, baseia-se fortemente no universo Mad Max. Nenhuma delas contém muito em termos de vida, cor ou esperança – exatamente o que os autores pretendiam. Tentar continuar após um evento devastador não é a idéia de ninguém para se divertir. Há uma excelente razão pela qual a filosofia dos Jogos de Guerra sobre guerra nuclear (“A única jogada vencedora é não jogar“) permaneceu sagrada desde sua concepção em 1983. Embora a maioria dos mundos pós-apocalípticos apresentados nos videogames ainda sejam buracos do inferno irradiados para os quais você não gostaria de levar seu pior inimigo, alguns jogos recentes envolvendo o o apocalipse fogem de uma certa “poética do pós-apocalipse”.
The Last of Us é outro jogo de fim de mundo decorado com as melhores cores da natureza, apesar das circunstâncias sombrias que cercam seu mundo e personagens. The Last of Us II leva isso ao auge da beleza que a natureza sobre construções civis pode ser.
Existe uma série de jogos, porém, que consegue se distanciar desse padrão apocalíptico, trazendo vida e cor, pessoas vivendo suas vidas e se acostumando ao mundo devastado. Claro que estou falando de alguns jogos da série The Legend of Zelda.
Quando a natureza toma conta
O mapa de The Legend of Zelda: Breath of the Wild é pontilhado com lembretes consistentes do que estava lá, cem anos atrás. Estradas pavimentadas sendo lentamente ultrapassadas por florestas cobertas de vegetação; as conchas das casas sem telhado e sem janelas, mas uma argila no chão. O mapa não pode ser percorrido sem encontrar o que estava lá – os restos do reino brotando através das fendas. Breath of the Wild tem um senso distinto de tempo e perda, tornando-o um trabalho raro de fantasia medievalista que lida não com um reino vivo. Os poucos reis que vemos dominam pouco mais do que pequenas cidades ou ruínas.
Por outro lado, quase todos os jogos de The Elder Scrolls começam a escapar do estado carcerário e a primeira escolha que você faz na criação de personagens em World of Warcraft é a aliança com um exército. Não há alianças em Breath of the Wild porque não há estados. Hyrule é ruínas; um conteúdo silencioso e a ser descoberto nesse silêncio.
O vazio de Hyrule convida a uma falta de objetivo agradável. Com estradas e fortes abandonados há muito tempo, os assentamentos são poucos e distantes, e viajar é perigoso. A perambulação é extraordinária em Hyrule, de Breath of the Wild, e a perambulação é a ação do personagem é o que melhor define Link. Vagar em si não é um recurso exclusivo do jogo. Todos os grandes jogos de mundo aberto oferecem este recurso. Mas Breath of the Wild utiliza a peregrinação como uma maneira de incorporar Link ainda mais profundamente à comunidade e ao mundo ao seu redor. Em vez de utilizar a perambulação como forma de impressionar o jogador sobre sua singularidade, o jogo o utiliza para atrair Link cada vez mais fundo na vida dos outros.
Filmes, livros e jogos sobre o fim do mundo compreensivelmente associam precipitação e falta de vida. Acreditamos que a poeira radioativa salina o solo em que aterra e o esteriliza por séculos, se não milênios.
Mas temos um exemplo próspero da vida real para demonstrar que não é esse o caso. A Zona de Exclusão de Chernobyl é uma área de 2.600 quilômetros quadrados que foi fortemente irradiada depois que a Usina Nuclear de Chernobyl sofreu um colapso em 1986. A quantidade de material radioativo que se estabeleceu ao redor da área após o desastre é muito maior do que a quantidade que afetou a região da cidade japonesa de Hiroshima depois que a bomba atômica foi lançada em 1945.
O efeito imediato do colapso foi devastador para a flora, a fauna e os seres humanos ao redor. A floresta ao redor da usina ficou vermelha e esquelética após absorver quantidades letais de radiação. Mas já se passaram 31 anos desde o desastre, e a vida selvagem é abundante na Zona de Exclusão, mesmo que partes da área ainda sejam altamente irradiadas. Lobos, cavalos selvagens e outros animais que eram escassos ou extintos na Ucrânia prosperam dentro e ao redor das ruínas de Chernobyl.
Partes do norte do Japão se tornaram uma pousada igualmente inabitável em 2011, depois que um grande terremoto causou outro acidente, ainda que menor, na usina elétrica da prefeitura de Fukushima. Os animais também se mudaram para reivindicar a terra que os humanos abandonaram – principalmente “javalis radioativos”.
É importante observar que a maioria desses animais ainda sofre os efeitos da radiação, incluindo defeitos congênitos, esterilidade, câncer e catarata. Mais preocupante, bactérias e micróbios foram afetados de maneiras que não são claramente entendidas; as árvores mortas da Floresta Vermelha já devem estar adubadas, mas mal se decompuseram.
A mensagem maior (e muito deprimente) por trás dos desastres nucleares do mundo é que a humanidade é de longe o maior impedimento para as chances de sobrevivência da vida selvagem. Plantas e animais selvagens podem prosperar mesmo depois que doses maciças de radiação alteram seu corpo, mas elas murcham e morrem na presença da civilização.
O grande dilúvio
O interessante é que não somente Breath of the Wild é o jogo da série Zelda que traz um tipo diferente de mundo pós-apocalíptico. Se olharmos para The Legend of Zelda: Wind Waker, percebemos um mundo submerso, tomado por águas e oceanos, de modo a referenciar, inevitavelmente, a bíblica história do dilúvio. Não se preocupa em mostrar como um mundo está destruído, pouco próspero e decadente, mas pelo contrário: mostra através da sua história, direção de arte, música e criação de mundo o quanto ali existe vida, uma vida que continua seu ciclo independente da interferência humana e que, não fosse a história da lenda ali contada, as criaturas, os animais e a natureza continuaria vivendo suas vidas perfeitamente bem.
Esse grande acontecimento em Wind Waker é chamado de Grande Dilúvio. A história conta que o rei de Hyrule tentou usar sua magia para parar Ganondorf, mas falhou. Deixados sem outra escolha, o povo pediu às três deusas douradas. As Deusas finalmente responderam às orações das pessoas, instruindo os escolhidos a fugir para as montanhas de Hyrule, a fim de escapar da inundação que se aproximava e impedir o desejo de Ganon de destruir a terra.
Uma vez que o povo estava em segurança, as Deusas causaram uma chuva torrencial, cobrindo a terra e transformando os cumes das montanhas em ilhas. O rei escolheu ficar para trás com seu reino condenado. Ele dividiu a Triforce da Sabedoria em duas partes e instruiu a princesa daquela época a guardar uma peça e fugir para o topo das montanhas com seus servos.
Um apocalipse temporal
Certamente a história mais interessante envolvendo apocalipse em Zelda está em The Legend of Zelda: Majora’s Mask, pois não somente subverte a dita “poética do mundo pós apocalíptico”, como ainda mistura tudo isso com uma espécie de prisão temporal, onde Link, o protagonista, tem de se prender num ciclo de três dias para impedir que o pior aconteça: uma gigantesca Lua com um rosto diabólico choque com o reino de Termina e destrua a tudo e a todos.
O curioso é que aqui não se trata de uma obra apocalíptica, em si, muito menos pós-apocalíptica, mas na verdade é “pré-apocalíptica”. Uma enunciação de que ao final do terceiro dia tudo vai acabar, e as pessoas que vivem ali naquele mundo percebem isso e começam a se comportar de maneira esquisita a medida que o tempo vai passando. Enquanto se joga o jogo, pode se observar o mundo respondendo à enunciação do fim do mundo ao final do terceiro dia: a música fica mais acelerada, a paleta de cores do jogo fica mais quente, o mundo fica mais perigoso e a Lua vai se aproximando cada vez mais daquele reino.
O objetivo, no final das contas, é impedir que aquele mundo acabe e e encare um fim apocalíptico e cruel.
Os seres humanos são capazes de atos horrendos, sem discutir isso. Mas se somos tão instintivamente selvagens quanto a ficção apocalíptica nos faz parecer, teríamos evoluído para criar a civilização em primeiro lugar? Recursos escassos não são novidade na história humana. Se não tivéssemos nos unido milênios atrás para abalar a Mãe Natureza por qualquer escasso sustento que pudéssemos obter, teríamos morrido em tempo recorde.
Fato interessante é que na maioria das vezes, Link é colocado nesses jogos como uma figura que está alheia ao mundo e não sabe das lendas que se passam ou até mesmo como alguém que sofreu de amnésia. Deste modo, aquele mundo apocalíptico, natural e selvagem é apresentado pra ele como normal, como cotidiano e novo para ser descoberto junto com você, jogador. Cada canto de Hyrule, cada segredo obscuro de Termina Field ou cada segredo das profundezas dos oceanos de Wind Waker.
Curiosamente, Breath of the Wild tem uma analogia baseada em magia às consequências nucleares: o lodo roxo-preto pulsante chamado “malícia de Ganon”. Se Link se aproxima demais dessa maldade, ele perde energia vital com pressa. A malícia é abundante no ponto zero da tentativa frustrada de invasão de Ganon, a saber, o Castelo de Hyrule. A área é desolada e cheia de cicatrizes, um contraste real com o resto das terras selvagens cobertas de vegetação do reino. Se Breath of the Wild tem uma área que lembra o estereótipo da mídia de um terreno baldio pós-apocalíptico sem esperança, onde nada pode crescer, são os restos da cidade que rodeia o Castelo de Hyrule.
Como alguém que está profundamente interessado em ficção pós-apocalíptica, foi um prazer ver a visão da Nintendo de várias Hyrules danificadas e testemunhar seu sucesso tentando se recompor de diversas formas diferentes. Não sei como será Hyrule no próximo jogo de Zelda, mas as tranquilas e ventosas montanhas de Breath of the Wild, Termina Field decadente e o Dilúvio em Wind Waker ficarão comigo por um longo tempo.
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