Eu que lute!

Eu que lute!

Gabriel sempre gostou de jogos de luta. Saber que tinha a habilidade em apertar aqueles botões, tanto nos consoles quanto nas máquinas de fliperama, dava ao nosso garoto uma felicidade capaz de iluminar a alma mesmo nos dias mais chuvosos ou tensos dentro de casa. Tensão vivida pela maioria das famílias pobres como a de Gabriel, não faltava comida mas também não sobrava nada para ir além daquela rotina de arroz, feijão, mistura e salada de alface com farofa. O luxo era aquela pizza de sábado a noite que antecedia o macarrão com frango do domingo.

Poder jogar era uma tarefa digna de qualquer herói de videogame. Esperar a única televisão da casa ser liberada para lutar alguns rounds exigia do garoto autocontrole, paciência e a sabedoria para pedir na hora certa. Como em um “puzzle” de Zelda, perguntar um minuto antes ou um minuto depois poderia significar um “sim” ou um “se você perguntar de novo vou jogar esse videogame no lixo!”. Portanto, Gabriel desenvolveu o poder de “perguntar sem perguntar”, fazendo uma cara de tédio misturada com um “posso te ajudar na cozinha” ele recebia um aval piedoso para se entreter por alguns instantes perante a televisão desocupada.

Correndo sem correr e feliz sem poder sorrir, Gabriel tirava da caixa seu tesouro. Não importava qual era a geração, resolução, mídia física ou digital, bits e essas frescuras de gamer mimado. Ele plugava os cabos vermelho, amarelo e branco na tv, ligava o “bicho” na tomada e deixava o volume alto o suficiente para ser ouvido por um vizinho amigo ou por seu primo que morava na casa ao lado. Escolhia o jogo, assoprava a fita e apertava o botão de ligar segurando a respiração até que a imagem aparecia pedindo para apertar “Start”. Alguns rounds de aquecimento e sempre alguém sentava ao eu lado para um “contra” amistoso, os fregueses mais comuns eram o vizinho ou primo, a mãe tentou algumas vezes mas se embaralhou nos “botões demais”. No tempo dela o controle tinha apenas um botão e ele ria sempre ao ouvir isso.

Quando o duelo acabava e a televisão era requisitada para a novela que iria começar os desafiantes se colocavam a comparar as estratégias, golpes e quem perdeu ou ganhou mais, quem “apelou”, qual controle estava quebrado e outras coisas que só tornavam o próximo duelo ainda mais esperado e prazeroso. Bons momentos em que a cabeça podia fugir dos problemas do cotidiano e nada mais importava além dos golpes especiais e barras de vida. Gabriel sonhava com uma vida simples como o apertar de botões, poder ajudar a mãe e resolver os problemas colocando e defendendo fichas até o último desafiante aceitar a derrota imposta pela sua habilidade nos jogos.

Pensou nisso quando anos depois teve que vender seu tesouro para custear seus livros da faculdade. Lembrou de quantas lutas perdeu e como todas elas o ajudaram a chegar onde está, subindo com dificuldade os degraus da vida sem deixar a mãe para trás, afinal ela foi sua primeira desafiante, sua primeira rival e parceira de luta. Saindo da loja de games contando o dinheiro, Gabriel viu o lançamento do console mais atual na vitrine, com controles e jogos apresentados dentro de um valor que eram quatro vezes o salário da mãe. Gabriel sorriu e foi para casa certo de que um dia voltaria para as arenas virtuais pagando com seu salário e jogando com o seus filhos, mas até lá, disse ele: Eu que lute.

Eu que lute!
Lute!

Um Mega abraço.

Até semana que vem.


[A coluna acima reflete a opinião do redator e não do portal Project N]

Nerd, nostálgico, pai e professor. Reclamador profissional com PHD em Harvard. Conheço o Mario, e daí? Assopra a fita e bora jogar! Canal Juninhos Fun Club no Youtube!!!