Poucas coisas nessa vida fazem sentido quando a sua vida não faz mais sentido. A comida não tem gosto, as cores não tem cor e nenhum abraço aquece. Não se tem rumo ou para onde fugir. Você conta suas derrotas e se arrepende dos “continues“. Flutua pelos dias como se todos fossem iguais e sua energia fosse drenada a cada pequena coisa. Tudo dói e não existe apenas um motivo para essa dor. Tudo é dor. As lágrimas se tornam rotina e a rotina um roteiro sem fim no qual os mocinhos roubam as suas forças e deixam um vazio silencioso, turbulento e enlouquecedor. O remédio é ilusão e é nessa ilusão que se acostuma a “viver”.
Marina era uma menina simples. Talvez até simples demais. Teve uma infância comum, escola comum e estava numa faculdade comum, psicologia, não queria grandes coisas da vida apenas ajudar as pessoas e viver em paz. O problema é que “paz” é um termo relativo. Cada um tem a sua e sabe o quanto está disposto a pagar por essa “paz”. Quais desaforos engolir e quais brigas deixar passar. A paz de Marina não era diferente. Filha única de um casamento infeliz viu os pais se separarem após anos de brigas tornando-se a princesa mimada que não podia ouvir um não. Cresceu sem saber como era estar sozinha ou não ter o que queria. Ganhava tudo que pedia e perdia fácil o interesse. Namorados iam e vinham como se ninguém estivesse a sua altura ou suportasse suas demandas. Mimada e sem rumo. Presa fácil para homens inseguros e violentos. Simples e mais comum do que se queira acreditar.
Seu namorado atual controlava suas roupas, seus horários e sua mente. Dava coisas caras e cobrava submissão. Recebia submissão e pagava com humilhação violenta e hematomas. Era do tipo que gostava de ser grande por fora por ser pequeno por dentro. Comum. Inseguro. Todavia dava à Marina aquela paz que ela estava disposta a aceitar, afinal não estava sozinha, tinha seus mimos e ninguém é perfeito. Galã de filme não existe. A vida é assim. Fazer o quê?
Suas notas eram boas e seus professores gostavam da menina que era inteligente e escondia suas frustrações por detrás de piadas sem graça e uma risada forçada. Eles sabiam que ninguém era tão desastrada a ponto de sempre bater o braço ou as pernas e cair da mesma escada toda semana. Aceitavam suas mentiras e tinham a sua “paz”. Menos a Professora Erika. Erika se reconhecia em Marina e via na menina a mesma pessoa que ela foi anos atrás. Sabia que nada de bom vinha desse modo de vida e que um dia a violência passional cruzaria uma linha fatal. Se aproximou da menina usando a sua disciplina como isca e a indicou para estágio numa ONG que atende crianças resgatadas de lares abusivos. Um ato de fé de que o sofrimento daquelas crianças despertasse algo na sua aluna favorita.
Marina frequentava a ONG três vezes por semana e na quinta semana já estava apaixonada. Cada criança era sua e cada sorriso um motivo para retornar. Apenas uma menina não se abria para ela e mais ninguém. Ficava no seu canto e só saia pra comer e dormir. Vivia com um joguinho nas mãos e sempre jogava a mesma coisa. Um dia Marina sentou ao lado dela e assistiu por horas a menina terminar o jogo por duas vezes seguidas. Era espetacular como a memória muscular e a tomada de decisões vinham de forma natural. Reativa e feroz. Aquela tela brilhante parecia ferver e o “hominho” pulava e atirava como um verdadeiro herói. Ao final da segunda “gameplay” ousou uma tentativa de conexão:
— Legal esse “hominho”. Ele tem nome?
— Samus. É uma menina.
Samus? Menina? Como assim um jogo de aventura com tanta cor e violência tinha uma menina como protagonista? Aquela simples afirmação deu um nó na cabeça de Marina. Seu olhar parado e sua falta de reação preocuparam a garota a ponto dela ir buscar um copo d´água. Conversaram horas sobre o jogo, sobre a vida, sobre como Lú foi abusada por homens que sua mãe trazia pra casa a vida toda, como aquela pequena heroína no seu DS vermelho lhe dava forças pra acordar todos os dias e a fez fugir buscando abrigo. Paz. Horas se tornaram dias e Lú ensinou à estudante de psicologia coisas que ela nem sonhava que existiam. Milhares de vidas vividas e morridas nos seus pequenos 12 anos. Uma força de vontade e o sonho de ser mais na vida trouxeram lágrimas e reflexões de ambas as partes. Uma pensou: — Por que não sou assim? Enquanto a outra agradeceu por não ser como a mais velha. Nas semanas seguintes uma alma renasceu, outra alma encontrou conforto e um relacionamento abusivo terminou.
Fim.
Fim?
Um mês antes da sua formatura o “ex” de Marina a esperou na porta da ONG para tentar reatar. Prometeu ser diferente e que seria melhor. Dizia ter parado de beber e que estava procurando ajuda. Ela parou pra ouvir e quando decidiu andar, ele a segurou com força pelo braço. Aquilo foi o suficiente pra saber que nada mudou. Pediu pra que a largasse e saiu andando com pressa até o metrô. Foi pela praça. Muita gente, ele vai se comportar. ******* gritava e exigia explicações sobre redes sociais. Curtidas. Quem é esse cara aqui? Ela só queria fugir. Ele deu um soco na sua cabeça. Puxou uma arma. Ficou tonta. Uma menina perguntou seu nome. Marina, ela disse. Sentiu a menina baixinha de mochila puxar seu braço e cair morta ao chão. Um homem tentou pegar a arma e caiu também. Olhos turvos. Cabeça doendo. Sem reação sentiu o calor do cano quente na sua testa e fechou os olhos. Paz.
Acordou com a notícia que a garota havia mesmo morrido e o rapaz perdido um rim, reposto pela menina da mochila. Ouviu seus nomes, mas não os guardou. Não importava. Nada mais importava. Ela ainda se sentia suja de sangue. Sem foco. Sem forças. Apenas a imagem de ******* colocando a arma na própria boca e atirando reprisava em “looping” na sua retina. As mão sujas de um vermelho escuro que nenhum sabão conseguia limpar. Olhava no espelho, mas não se via.
As últimas palavras dele ensurdecedoras gritavam sussurrando na sua mente. — A culpa é sua.
Paz?
Poucas coisas nessa vida fazem sentido quando a sua vida não faz mais sentido….
Boa semana. Fiquem bem.
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